quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Terras bolivianas são ociosas, diz constituinte do partido de Evo Morales

Brasília (Julio Cruz Neto / Agência Brasil) - O presidente Evo Morales realizou nos últimos dois dias a segunda reunião com prefeitos departamentais (equivalentes aos governadores brasileiros) para tentar resolver a crise política do país, dividido entre uma Constituição que vários departamentos renegam – aprovada em Assembléia e ainda pendente de referendo popular – e os estatutos de autonomia considerados ilegais por La Paz.
Para obter um panorama da situação e entender melhor os argumentos das forças políticas que se enfrentam no país, a Agência Brasil ouviu dois constituintes: Ruben Dario Cuellar, chefe da bancada nacional do Poder Democrático Social (Podemos, principal partido da oposição), e Carlos Romero, do Movimento ao Socialismo (MAS, partido de Evo Morales).
Leia abaixo os principais pontos da entrevista com Romero. A outra, em que Cuellar disse que com a nova Constituição o país deixaria de ser Bolívia e viraria uma confederação de nações indígenas,
já foi publicada.
Agência Brasil: A situação política está realmente voltando à normalidade, como disseram prefeitos (governadores) e representantes do governo federal durante a primeira reunião?
Carlos Romero: É natural que quando há uma crise de Estado, a necessidade de reorganizar as coisas vai produzir tensões, porque há muitos interesses estratégicos confrontados. Mas no processo de reforma da Constituição, projetou-se uma redistribuição de poderes em termos econômicos, políticos e culturais pela necessidade de incluir os povos indígenas, redistribuir poder entre as regiões e impulsionar uma nova estrutura agrária, através de uma reforma agrária integral. A que temos agora é absolutamente desequilibrada, sobretudo em termos de posse de terras, e ineficiente em termos de produtividade. É inevitável que vai haver tensões. O Movimento ao Socialismo foi estigmatizado, tachado de comunista, indigenista, que vai afetar a propriedade privada, acabar com a educação privada, uma série de temores sobretudo da classe média. No fim do ano, havia um ambiente muito tenso, com ameaça de confronto, sobretudo porque os setores conservadores usaram a estratégia de confrontação regional e racial, mas foi importante o apoio da comunidade internacional, que reconheceu a legitimidade da transformação democrática do país e também o posicionamento das Forças Armadas, que disseram que não vão permitir atitudes separatistas no interior do país, forçando prefeitos do Oriente a dialogar. É pouco o que se avançou até agora, mas é importante que se distensionou o cenário político e agora estamos numa mesa tentando resolver as diferenças.
ABr: Você acredita na possibilidade de um acordo pacífico e evitar os confrontos que os bolivianos temem?
Romero: Sim, porque não há razão para confrontos.
ABr: Mas houve, não?
Romero: Sim, mas não são razões que não se pode resolver pela via da concertação, porque as autonomias e a descentralização política que os departamentos pleiteiam legitimamente estão contempladas na Constituição. Mas há uma diferença. Eles querem controlar recursos naturais e nós dizemos que essa é uma função indelegável do Estado, somos um país que carece de recursos e obtém a maior parte de seus recursos fiscais da exportação de recursos naturais. Esse é um tema que nos separa, mas nos demais há coincidências... No tema da terra, não podemos fomentar terras ociosas que não servem para a produção, que servem para outros negócios.
ABr: A Constituição prevê autonomia departamental, mas também outras categorias, como a indígena. Parece uma forma de diluir e dar menos importância à autonomia departamental propriamente dita. Você concorda?
Romero: Essa é uma questão colocada pelos comitês cívicos dos departamentos que querem autonomia, mas não é bem assim. A Constituição prevê quatro autonomias. Uma é a municipal, que já existe há muito tempo e foi apenas ratificada. Outra é a departamental, que emerge do referendo autonômico de 2006 e está contemplada nos alcances definidos neste referendo. E há duas novas, que podem ser consideradas como cerceadoras da força das autonomias departamentais sob um certo ponto de vista, que são as indígenas e as regionais. Mas as indígenas se limitam às terras coletivas das comunidades, se traduzem na gestão territorial diversa utilizada por essas comunidades, demandas que remontam aos anos 90 e têm como marco internacional a última declaração das Nações Unidas. A autonomia regional, que se circunscreve a um departamento, não altera seus limites político-administrativos. Tem a vantagem de atender algumas demandas de regiões específicas e fazer um contrapeso à autonomia departamental, porque vai obrigá-la a não ser centralista, a se preocupar com suas províncias, porque aquelas que são descuidadas pela administração departamental certamente vão impulsionar a autonomia regional.
ABr: Você acredita que as autonomias indígena e regional podem fracionar os territórios, como disse o constituinte oposicionista Rubén Darío Cuellar?
Romero: Parece que o senhor Cuellar não leu direito a Constituição. O problema é que ele não participou das sessões da Constituinte, do debate, porque obviamente as autonomias respeitam a atual divisão político-administrativa do país. Se há territórios indígenas que transcendem um departamento, suas unidades de gestão vão operar pela via comunitária, mas sem afetar o mapa do país.
ABr: Cuellar disse que não boicotou a Constituinte e que só não participou porque os governistas não deixaram. Em que condições ocorreram essas plenárias, de que praticamente só o partido do governo e seus aliados participaram?
Romero: Isso é absolutamente falso. Eles trabalharam o tempo todo para que a Assembléia Constituinte não funcionasse, mas como falhou o plano, tentaram não assistir às sessões esperando que não houvesse quórum. Mas a Assembléia terminou com bastante legitimidade, porque participaram 11 forças políticas das 16 e representantes dos nove departamentos. Dos 166 que participaram da última sessão em Oruro [quando a Constituição foi aprovada ponto-a-ponto], 134 eram do MAS e 32 de outras forças. Houve legitimidade, pluralismo, participação democrática e em nenhum momento se impediu fisicamente o acesso dos constituintes do Podemos.
ABr: O senhor mencionou desequilíbrio na distribuição de terras. Como está a situação atualmente?
Romero: Na Bolívia, aplicou-se a reforma agrária em 1953. Entre 1953 e 1992, quando se intervém no processo por denúncias de irregularidades, foram distribuídos 57 milhões de hectares, dos quais 68% são terras que beneficiaram médios e grandes proprietários. A cada sete hectares que beneficiaram esses empresários, só três beneficiaram indígenas e campesinos. Foi injusto. Por outro lado, os níveis de produção são baixos. O país tem um potencial agrícola de 16,4 milhões de hectares e só 2 milhões estão cultivados. Há muita terra ociosa, usada apenas para canalizar créditos, alugar ou “engordar” à espera de investimento público ao redor que permita vendê-la a preço alto.
ABr: E depois de 1992?
Romero: Foi aplicada uma nova legislação agrária que ordena um processo de regularização de direitos executado com muita dificuldade, que tem reafirmado as irregularidades, sobretudo no Oriente boliviano e em épocas de ditaduras militares.
ABr: Um dos argumentos da oposição é que a quantidade de povos originários efetivamente não passa de 7%, e por isso não se justifica uma Constituição plurinacional, com tantos direitos para os povos indígenas (argumento do constituinte Rubén Darío Cuellar, que disse à Agência Brasil que a porcentagem de indígenas é inflacionada erroneamente por causa da autodeclaração). O que o senhor pensa?
Romero: Se só houvesse 7%, não teríamos um presidente indígena nem maioria no Parlamento e na Assembléia Constituinte. Eles tomam como fator de quantificação o fator racial, mas é muito duvidoso verificar a pureza de sangue hoje em dia. De acordo com a autodeclaração do último censo, 62% se dizem indígenas, e esse é o parâmetro definido internacionalmente pelo convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
ABr: Você disse que não houve debate de fundo na Constituinte. Por quê? O MAS também tem culpa?
Romero: Isso é uma responsabilidade conjunta que envolve o MAS e a oposição, sem dúvida.

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