terça-feira, 6 de agosto de 2013

CACHAÇA

A nova estrela das adegas

Goiânia (Jairo Menezes-Diário da Manhã) - Cachaça, pinga, goró, e tantas outras denominações são dadas a esta bebida, genuinamente brasileira, descoberta ao acaso, por escravos e que hoje é um orgulho nacional; é o terceiro destilado mais consumido no mundo – atrás apenas da vodca (Rússia) e soju (destilado de arroz coreano). Tornou-se quase um xingamento chamar alguém de cachaceiro – por conta da bebida ser nacional, o valor é baixo e quando chamados de cachaceiros ou pinguços, os bebedores confundem o nome dado a quem se bebe, com uma afronta por conta do baixo custo. No Brasil, o que ficou definido é que a bebida vinda de produtores das Minas Gerais são os que fazem a melhor cachaça do País. Mas não é por aí. A reportagem do DM descobre, com fontes oficiais, que produtores goianos vendem a bebida aos mineiros, que a engarrafam e rotulam como produzida no Estado.
Em Goiás são 2 mil alambiques; deles, apenas 15 têm marca registrada e estão nos padrões de exigência estabelecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A maioria dessas industrias está localizada na região da cidade de Posse – a 513 quilômetros de Goiânia.
É natural que em uma simples fazenda, possa haver um pequeno produtor, de restrita quantidade e a venda é feita diretamente no alambique, para intermediários na sede do município onde acontece a produção. A estrutura de produção é de baixo nível tecnológico, utilizam a tração animal para movimentar as moendas, as máquinas e equipamentos quase que sempre estão sucateados e em péssima condição de conservação pela depreciação e manutenção inadequada e a produção a céu aberto.
A produção da cachaça de alambique no Estado é desenvolvida em todas as regiões. A expressiva maioria dos produtores é informal, com baixo nível de renda e de escolaridade, caracterizado por uma organização familiar, perpetuada por sua tradição.
PRÓ-CACHAÇA
A qualidade da cachaça goiana é irrefutável e quem a prova, pode dizer que os toques são sutis. O aroma e a pureza são pontos variantes, mas nem sempre baixos. Goiás pode ter a melhor qualidade de cachaça do País, mas para que isso aconteça, basta somente que haja incentivos para a produção de valor.  Goiás anda em passos lentos na produção de qualidade de cachaça, mas ao menos anda. Ainda que os incentivos sejam tímidos, eles existem. Nesse final de mês passado, o governador sancionou uma lei da governadoria que incentiva os produtores da aguardente de cana.

Segundo o Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia (Sectec) Mauro Fayad, está sendo um passo largo que Goiás está dando junto aos produtores de Goiás. “Em todos os tempos, nunca houve um incentivo tão sólido como este que foi sancionado agora, pelo governador”, conta. Fayad fala do Pró-Cachaça, um incentivo que pretende criar um Arranjo Produtivo Local (APL), com a marca da ‘Cachaça de Goiás’ e capacitação profissional de produtores.
Fayad ainda relata que serão disponibilizadas, aos produtores, duas linhas de créditos diferenciadas. “Além disso, precisamos avaliar a qualidade da cachaça goiana. O acompanhamento laboratorial é de suma importância e nós vamos fazer com que um selo de qualidade seja criado”. “A cultura de que Goiás não tem cachaça boa deve ser caída. Não existe isso. Somos, se não os melhores, um deles”, diz.
MINEIRA GOIANA
O secretário faz uma revelação: “Descobrimos que empresas de Minas Gerais compram a bebida em Goiás e a levam para o Estado vizinho em barris. Ao chegar em seus galpões, engarrafam e rotulam como se fossem mineira. O material produzido em Goiás é vendido a baixo lucro, mas a fama de qualidade é dos nossos vizinhos de divisa”, constata.

“Nossa cachaça é de qualidade, mas o que nos falta mesmo é fazer com que o produtor tenha acesso a um laboratório de análise, para determinar e comprovar o alto padrão da cachaça goiana”, comenta Mauro Fayad. A Sectec proverá, por meio do Pró-Cachaça, esse acesso aos produtores. “Uma das coisas que mais nos preocupa, na produção não fiscalizada em Goiás, é a higienização. Não sabemos a procedência da cana, nem de como é feita a fermentação. O produto final é, infelizmente, duvidoso”, acredita o secretário.
Mauro Fayad ainda ressalta que várias regiões goianas têm potencial propício para a produção de qualidade de cachaça, até mesmo melhores que a região mineira. “Goiás não tem geada – o que existe em Minas Gerais. O nosso tempo é mais seco que no Estado vizinho. Isso nos proporciona uma cana mais adocicada e, naturalmente, traz uma cachaça de qualidade. Só temos que saber trabalhar melhor essa nossa produção”, pondera.

Longe de grande escala
Pequenos produtores, como Wilson Garcia Lopes, de 68 anos, morador da Fazenda Rozal, em Trindade, em sua maioria, mesmo sabendo que somente comprovaria a qualidade de sua cachaça e trariam benefícios, não querem aderir ao Pró-Cachaça. Wilson, que estudou até a 4° ano do Ensino Médio, aprendeu a fazer cachaça em 1988, mas ele já fabricava rapadura, na fazenda da família, desde 1970. Tranquilo, ele recebe a reportagem do Diário da Manhã para contar como é feita sua produção e o que ele acha desse novo projeto.
“Pode até ser que a cachaça de Goiás receba um certificado de qualidade e com isso os valores do produto sejam inflacionados”, conta Wilson. Ele não quer, de maneira alguma, entrar em qualquer tipo de projeto que por ventura possa modificar algum dos processos de confecção da bebida. “Se eu entro nesse projeto, tenho que aumentar a produção. O que me faz medo é diminuir a qualidade da cachaça”, revela.


DA PLANTA PARA GARRAFA
As canas-de-açúcar são plantadas ali mesmo, a cerca de 100 metros da casa onde Wilson e a família toda moram. Ele criou, naquela fazenda, cinco filhos – quatro homens e uma mulher. Hoje, com netos e sobrinhos, passa as tradições para frente. “A rapadura, a moça-branca (uma moldura feita com o melado da cana batido), são doces que minha família faz desde meu pai. Agora trago além dessas, tradições como o carro de bois, que são levados anualmente à Romaria do Divino (Trindade) e a cachaça”, fala com a voz embargada.

“Eu me emociono todas as vezes que me chega alguém para comprar um litro, dois. Saber que aquela pessoa bebeu da cachaça que eu fiz nesse, que é meu terceiro alambique, com caldo de canas plantadas no meu quintal é muito gratificante”, comenta. Quem o ouve falar, pensa até simples a produção. Mas vai bem além daquilo que ele descreve.
Wilson Garcia planta canas em abril, todos os anos. Com as ultimas chuvas da época, a cana cresce até está adequada para colheita e separação de suas folhagens. Só então o caldo da cana é extraído, em uma moenda elétrica – há seis anos a tração era animal, com quatro burros. Aquele líquido é armazenado posteriormente em caixas d’água, com macerado de milho, para agilizar o passo mais importante deste processo, na fazenda de Wilson: a fermentação.
Quando a Reportagem fez o primeiro contato para a realização deste trabalho pelo DM, Wilson estava preparando a fermentação. A chegada de surpresa da equipe de reportagem, na fazenda, provocou um alvoroço. Um dos filhos, Márcio, já adiantou logo, na sexta-feira: “Meu pai está fazendo ainda o processo de fermentação – e esse é o segredo da cachaça dele. Então, infelizmente, vocês não podem entrar lá”.
Esse processo dura três dias até a garapa está totalmente azeda. A maturação é de 24 horas. Só então ele leva o liquido para o alambique de cobre, numa temperatura de 90°C exatos. “Caso passe disso, a válvula que extrai o vapor para a condensação após ser resfriado não suporta e o liquido que está para evaporar sai. A consequência é sujar a cachaça e perder tudo o que já foi feito”, diz o homem.
Com paciência e muito trabalho, além da dedicação de um sertanejo, a cachaça é produzida diariamente, por uma semana, somente uma vez por ano. A produção, de quatro mil litros de bebida não aumenta. “Jamais. Se eu aumentar a produção, minha cachaça baixa a qualidade e eu não quero saber de quantidade. Quero é ter uma cachaça boa”, revela, enquanto faz a produção sozinho, colocando o liquido dentro do alambique – ele, já operado de hérnia de disco, pega dois baldes cheios, cada um com 15 litros de garapa. Observa a fervura, a temperatura, num termômetro afixado no tambor de cobre, e retira um tição de fogo, de debaixo do alambique, para manter os 90°C.
Em seguida, ele acompanha o cano de cobre com o olho, durante sua fala: “Um homem é feito de seus orgulhos. O meu é fazer cachaça para que outros possam, dois anos após sua destilação, me dizerem que meu trabalho ficou bom”. Ele passa pela serpentina, resfriada numa caixa de alvenaria, com água corrente, para resfriar o vapor que entra e, depois de condensado (a passagem do estado gasoso para o líquido), se torna a tão trabalhosa cachaça. “Mas essa que sai agora é ruim. Não tem um gosto bom. Ela tem que envelhecer – e quanto mais tempo isso durar, melhor é a cachaça”, disse.
Dentro de um quarto reservado, iluminado apenas por um bico de luz incandescente, ele abre a porta: lá dentro está o tesouro. O cheiro não nega: tem cachaça! O homem mostra com simplicidade e orgulho os barris de plástico, as bebidas que estão em processo de envelhecimento e a ‘melhor de todas, de seis anos’. “Elas (as cachaças) são guardadas aqui. São poucas com rótulo – só porque um amigo me pediu, criei um nome fantasia, sem registro, sem nada. Simplesmente criei o nome, imprimi e colo na garrafa. Mas geralmente vendo em garrafas pets”, revela.
De lá da fazenda de Wilson, a reportagem se despede e vai direto para Guapó. Na estrada, a certeza de que o próximo passo da apuração da reportagem seria o conhecimento de outro extremo: Goiás tem mais produtores de cachaça. Também artesanais, mas com produção maiores e registrados. Produção diferente da cachaça de Wilson.




A fabulosa fábrica de pinga

Os cinéfilos que lerem este título, certamente pensarão no filme da Warner Bros Picture, de 1971. A aventura contava sobre um garoto, em uma excursão por desbravar uma fábrica de doces à base de chocolate. O DM fez diferente, foi até uma fazenda, às margens da BR-060, após Guapó, para descobrir como é a fabricação artesanal, mas em uma produção maior que a do senhor Wilson, de Trindade.
Pai e filho – Enéias Guedes e Guto Guedes, 44 – decidiram que com o restante da cana que era para alimentar o gado, fariam cachaça. A ideia surgiu em 1977 e desde então é desenvolvida a mesma receita da bebida, que desde 2006 tem marca registrada. A Cachaça da Posse é envelhecida por dois ou seis anos em barris de carvalho antes de ser vendida. “Somos mineiros e esse gosto por cachaça vem de nossa terra natal. Resolvemos ir contra o desperdício. As primeiras produções foram experimentais, até surgir oportunidades de vendagem e, enfim, sair da informalidade”, relata Guto Guedes, o filho que hoje é quem administra a produção.
“Não pensamos em fabricar muito. Temos três pessoas contratadas, para fazerem até 30 mil litros de cachaça por ano. Isso é o que somos capazes de fazer hoje sem baixar a qualidade, que é o essencial para nós. Não somos grandes produtores. Somos pequenos, em vista de fábricas em Pirassununca, ou em Pernambuco, por exemplo”, revela Guto, enquanto mostra o processo. Guto já jogou fora toda ou parcialmente a cachaça fabricada em um dia, porque segundo ele, estava fora dos padrões exigidos pelos apreciadores.
“A cachaça goiana é ótima – estudos revelam que um dos melhores lugares para produzir cachaça em todo o País, está no interior do Estado. Nossa cachaça tende muito a avançar e com o incentivo do Pró-Cachaça poderemos ir além de outros grandes produtores do País, que acabam ganhando a fama de serem os melhores fazedores de cahcaça, levando produto goiano para ser envasado e rotulado lá", desabafa Guto, ao mostrar que a cana-de-açúcar é primeiramente moída, ao ar livre, e seu caldo seja extraído ao máximo. Esse líquido inicial desce direto para um decantador, que separa as partes sólidas da líquida, que segue por meio de canalização em PVC para uma Caixa de Recepção.
Só daí é que, segundo Guto, a doçura do caldo de cana é testada, para se saber quanto será o teor alcoólico da cachaça e ter noção se aquela matéria-prima está ou não apta a ser usada para fabricação. O líquido, após testado, vai, ainda em cano de PVC, para as dornas de fermentação, e são misturadas a agilizadores dos fermentos. "Arroz e milho são os usados por nós aqui", conta. Após três dias é que o material, completamente azedado, vai, por meio de cano, para a segunda sala do processo: onde está o coração da cachaça - o alambique de cobre, sobre um fogareiro de alvenaria, com tijolos expostos e vagamente colocados um sobre outro. 
O alambique varia, segundo Guto Guedes, temperaturas de 90°C a 100°C, "nada mais que isso". Dali o liquido da garapa, após fervura, entra em processo de ebulição, quando o vapor segue por uma cânula à outra sala, onde ocorro o quarto processo da fabricação - um grande caldeirão onde fica a serpentina, por onde passa o vapor resfriado para que seja condensado e o líquido cachaça saia e caia diretamente para um balde de inox. 
Aquele balde de inox, com o conteúdo extraído, é levado para a quinta e ultima parte da fabricação - a sala de envelhecimento. É quando a cachaça é colocada para envelhecer dois ou cinco anos e barris de carvalho. Esses barris, com até 60 anos, segundo Guto, primeiramente serviram para envelhecer vinhos portugueses e depois uísques escoceses. Só depois foram importados ao Brasil, com uma pequena quantidade de malte em seu interior. "O malte que estava dentro dele, quando chegou, era doce como mel. Uma delícia", comenta Guto.
Após o envelhecimento da bebida, aquele líquido que envelheceu nos barris é levado, por meio de outra canalização, para uma sala ao lado, onde é filtrado e envasado manualmente e após, as garrafas são lacradas e rotuladas. Para vendas especiais, existem dois modos para serem distribuídas: um saco de TNT, com a estampa da marca da cachaça e uma caixa, com madeira branca e um copo de bambu, com a marca estampada em alta temperatura - tanto no copo, como nas laterais da caixa. E assim Guto diz que sua cachaça é toda produzida nos mais rígidos padrões estabelecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Saiba Mais

O que é Aguardente de cana?
A legislação brasileira atual (decreto n.4072, de 2002) define aguardente de cana como sendo toda bebida obtida do destilado alcoólico simples de cana de açúcar ou pela destilação do mosto fermentado de cana de açúcar, com graduação alcoólica variando entre 38% e 54%  - percentagem volúmica (v/v) –, a 20°C. Já a Cachaça é definida como uma aguardente de cana de fabricação exclusivamente brasileira, com graduação alcoólica mais controlada (de 38% a 48% v/v, a 20°C).

A produção
O processo produtivo da cachaça é composto por basicamente seis estágios. Primeiro ocorre a preparação da matéria prima, isto é, o corte (manual – por “bóias-frias” – ou industrial – com maquinário específico), seguido da separação das folhagens (por queimada ou mecanização), transporte e armazenamento. O tempo ideal para todo o processo de preparação da matéria prima é de 24 horas. Adiante, temos a extração do caldo feito a partir de moendas, para logo após ocorrer a fermentação do mosto. Mosto é tudo aquilo que pode ser fermentável, ou seja, o caldo da cana. O mosto deve ser associado a fermentos específicos para acelerar o processo de fermentação. Existem dois tipos de fermentos: os naturais – também conhecidos como caipira – de baixa velocidade; ou o prensado – leveduras do mesmo tipo usado em panificadora – que é de aceleração mais rápida. No entanto, o processo mais usado é o misto. O resultado da fermentação – denominado de vinho – agora é levado à destilação, onde se pretende extrair de tal vinho o etanol, água, aldeídos, ácidos, cetonas e todos os componentes que fazem parte da aguardente, sendo extraída por meio de uma coluna de destilação ou alambique. A pinga, já pronta, pode ser envelhecida em tonel de madeira, de modo a alterar cor, aroma e sabor. Por último, o engarrafamento, onde é necessária uma padronização, o que não acontece em vários casos.

Como surgiu?
O álcool etílico, consumido nas bebidas alcoólicas, foi provavelmente descoberto pelos árabes. Em cada região do mundo se produz um tipo especifico e característico de bebidas, de acordo com as condições da produção de cada área, como a grapa (destilado de uva da região da Itália), o uísque (destilado proveniente da cevada sacarificada, clássico na Escócia), ou ainda a bagaceira (destilado do bagaço de uva, característico da região de Portugal). No Brasil, a cana de açúcar serviu para suprir o mercado europeu no período colonial, devido ao fato de nosso clima ser distinto do europeu. A aguardente de cana propriamente dita surgiu ao acaso, a partir das impurezas retiradas durante o processo de fervura do caldo da cana, no processo da produção de açúcar. A este líquido foi dado o nome de acagaça  muito apreciado pelos escravos. E é esta cagaça que mais tarde, ao ser destilada, dará origem à cachaça ou pinga.


Nos engenhos, a cachaça tinha as funções de desjejum, mata-bicho, estimulante, remédio ou até como moeda (juntamente com o tabaco) para a compra de escravos. De meados do século XVI até o XVII, alguns engenhos resolveram dar mais valor à pinga, dividindo a atenção de sua produção. O fato repercutiu com tanta intensidade ao diminuir o consumo da bagaceira e do vinho portugueses que a Corte proibiu sua produção, comercialização e até seu consumo. Este fato tornou a cachaça um símbolo dos Inconfidentes mineiros, como representação da resistência à dominação da metrópole. Posteriormente, com o fim da mão de obra escrava e o aumento do consumo do café, inicia-se uma fase de valorização às referências europeias  Neste contexto, a cachaça é mais uma vez marginalizada, só sendo retomada sua defesa pelos modernistas, durante a Semana de Arte Moderna de 1922, como signo nacional, juntamente com o samba e a feijoada.




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