IMPRENSA BRASILEIRA, 200 ANOS
História de continuidade e de ruptura
Venício A. de Lima
Os 200 anos da imprensa no Brasil vêm sendo celebrados em todo o país. Comemora-se a primeira edição do Correio Braziliense por Hipólito José da Costa, em Londres. O mensário circulou de 1º de junho de 1808 a dezembro de 1822. No território nacional, a atividade ainda era proibida pela Coroa portuguesa. O Correio era lido "por portugueses que ali [Londres] residiam e por comerciantes ingleses que tinham correspondentes no Brasil e em Portugal" e, depois de três meses de viagem clandestina, pela aristocracia do poder no Brasil.
A marca Correio Braziliense foi negociada com a família de Hipólito da Costa por Assis Chateaubriand, à época embaixador do Brasil na Inglaterra (1957-1960). Quando Brasília foi inaugurada, em 1960, começou a circular um outro Correio Braziliense, agora como parte dos Diários e Emisssoras Associados, desde então o principal jornal do Distrito Federal.
Dificuldades da História
Historiadores nos ensinam que nada mais equivocado do que tentar compreender o passado usando as categorias do presente – e que história não necessariamente tem algo a ver com memória. Além disso, sempre é preciso estar alerta para a construção de uma história do passado que só existe na medida em que serve aos interesses de quem a conta no presente.
O mundo e o país de 1808, por óbvio, não são os mesmos de 2008. Ao longo destes dois séculos, o Brasil passou de Colônia a Império e a República. A imprensa – a opinião impressa de uma única pessoa – virou mídia de massa – grupos empresariais e profissionais especializados. Registrar todas essas mudanças no tempo e no espaço, e ainda o que elas significam, não é tarefa fácil.
Consideradas as dificuldades de se fazer história, arrisco-me a duas reflexões sobre a imprensa brasileira tomando como referência o Correio Braziliense de Hipólito da Costa: uma de continuidade e outra de ruptura.
Hipólito e o seu Correio
Nelson Werneck Sodré em sua pioneira A História da Imprensa no Brasil (Mauad Editora, 4ª. edição, 2004) considera que é "discutível" a inserção (do Correio) no conjunto da imprensa brasileira. Para ele, isso decorre "menos pelo fato de ser feito no exterior, o que aconteceu muitas vezes, do que pelo fato de não ter surgido e se mantido por força de condições internas, mas de condições externas".
Deixando, todavia, de lado a polêmica, as celebrações correntes têm apresentado o brasileiro Hipólito da Costa e o seu Correio como marco inicial da imprensa no país e como defensores da independência, do interesse nacional, da abolição da escravatura e da permanência de D. Pedro I no Brasil. Existe, no entanto, uma outra versão para os compromissos de Hipólito da Costa e de sua publicação.
Em seu livro 1808 (Editora Planeta, 8ª. reimpressão, abril de 2008), o jornalista Laurentino Gomes – referenciado em historiadores como Manuel Correia de Andrade, Manuel de Oliveira Lima, Roderick J. Barman, Magalhães Júnior e Wilson Martins – argumenta que Hipólito e seu jornal foram financiados pela Coroa portuguesa de 1812 a 1822, isto é, ao longo de 12 dos 14 anos em que o Correio foi publicado.Vale a longa citação:
"O mesmo Hipólito que defendia liberdade de expressão e idéias liberais acabaria, porém, inaugurando o sistema de relações promíscuas entre imprensa e governo no Brasil. Por um acordo secreto, D. João começou a subsidiar Hipólito na Inglaterra e a garantir a compra de um determinado número de exemplares do Correio Braziliense, com o objetivo de prevenir qualquer radicalização nas opiniões expressas no jornal. Segundo o historiador Barman, por esse acordo, negociado pelo embaixador português em Londres, D. Domingos de Souza Coutinho, a partir de 1812, Hipólito passou a receber uma pensão anual em troca de críticas amenas ao governo de D. João, que era um leitor assíduo dos artigos e editoriais da publicação. `O público nunca tomou conhecimento desse acordo´, afirma o historiador. De qualquer modo, Hipólito mostrava-se simpático à Coroa portuguesa antes mesmo de negociar o subsídio. `Ele sempre tratou D. João com profundo respeito, nunca questionando sua beneficência´, registrou Barman. O Correio Braziliense, que não apoiou a Independência brasileira, deixou de circular em dezembro de 1822. Hipólito foi nomeado pelo Imperador Pedro I agente diplomático do Brasil em Londres, cargo que envolvia o pagamento de uma nova pensão pelos cofres públicos" (pp.135-136).
Em outra passagem, Laurentino Gomes, após registrar a negativa de Hipólito da Costa em colaborar com os revolucionários pernambucanos de 1817, comenta:
"Num despacho oficial de Londres, o embaixador português, D. Domingos de Souza Coutinho, avalia os resultados do acordo (da Coroa com Hipólito): `Eu tenho-o contido em parte até aqui com a esperança da subscrição que pede. Eu não sei outro modo de o fazer (sic) calar´. O historiador Oliveira Lima, ao avaliar essa relação secreta, dizia que Hipólito José da Costa, `se não foi propriamente venal, não foi todavia incorruptível, pois se prestava a moderar seus arrancos de linguagem a troca de considerações, de distinções e mesmo de patrocínio oficial´" (pp. 290-291).
Essas informações mostram que o Correio Braziliense de Hipólito da Costa inaugura um tipo de vínculo que tem marcado a história da imprensa no Brasil desde sempre. Pesquisas contemporâneas, sobretudo no ambiente acadêmico, têm revelado que mesmo após as reformas "modernizadoras" da década de 1950, os principais jornais da cidade do Rio de Janeiro (à época, capital do país) continuaram "vinculados" ao Estado através de várias formas de financiamentos, isenções fiscais, empréstimos, subsídios e publicidade oficial.
Neste sentido, pelo menos parte de nossa imprensa não foge ao padrão de outras instituições brasileiras, já analisado por Roberto Schwarz no seu clássico sobre "as idéias fora do lugar". Liberal no discurso, a imprensa nega o liberalismo e seus principais valores na prática empresarial e jornalística.
Os leitores dos jornais
O Correio Braziliense circulava e era lido por um número reduzido de pessoas: comerciantes, altos funcionários da Coroa portuguesa e o círculo mais restrito do poder. Na verdade, Hipólito da Costa não escondia o que ele pensava sobre a maioria da população brasileira na sociedade escravista daquele primeiro quarto do século 19. Em uma das edições ele afirmava:
"Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém aborrece mais do que nós sejam essas reformas feitas pelo povo. Reconhecemos as más conseqüências desse modo de reformar. Desejamos as reformas, mas feitas pelo governo, e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo" (Correio Braziliense, p. 573, VI, 1811; citado em Sodré, p. 33).
Não há dúvida, portanto, que a imprensa brasileira nasceu elitista. E foi a continuidade dessa característica que levou Bernardo Kucinski a afirmar, quase 190 anos depois, no final do século 20, que...
"...a elite dominante é ao mesmo tempo a fonte, a protagonista e a leitora das notícias [da imprensa]. Uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa" (Síndrome da Antena Parabólica, Editora Fund. Perseu Abramo, 1998).
Há, no entanto, evidências de que rupturas importantes estão ocorrendo. Após um longo período, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) anuncia o crescimento da circulação e do faturamento do setor. Os diários auditados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) tiveram 10,7% de crescimento na circulação em 2007 em relação a 2006.
Entre os 10 jornais de maior circulação em 2007 (cf. quadro abaixo), quatro são jornais populares que circulam no Rio de Janeiro (Extra e Meia Hora), em Belo Horizonte (Super Notícia) e em Porto Alegre (Diário Gaúcho). O Extra, do Rio de Janeiro, é o mais vendido.
Jornais de maior circulação em 2007
1. Folha de S.Paulo (Empresa Folha da Manhã) - 302.595 exemplares
2. O Globo (Infoglobo Comunicações SA) - 280.329
3. Extra (Infoglobo Comunicações SA) - 273.560
4. O Estado de S.Paulo (S/A O Estado de S.Paulo - 241.126
5. Super Notícia (Sempre Editora S/A) - 238.611
6. Meia Hora (Editora O Dia S/A) - 205.768
7. Zero Hora (Zero Hora Editora Jornalística S/A) - 176.412
8. Diário Gaúcho (Zero Hora Editora Jornalística S/A)- 155.328
9. Correio do Povo (Empresa Jornalística Caldas Júnior-154.188
10. Lance! (Arete Editorial S/A) - 112.625
A exemplo do que já acontece com o acesso à internet (ver "Inclusão digital: A internet e os novos `formadores de opinião´), o aumento de circulação dos jornais populares também é uma conseqüência da expansão das classes C e D. Além disso, apesar de ainda existir espaço para casos policiais, os jornais populares se voltam hoje para pautas como serviço público, direito do consumidor, entretenimento, trabalho, saúde, transporte e educação. Estas são as exigências dos seus novos consumidores.
Vale ainda registrar que o jornal não-pago de maior circulação no país é a Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, com cerca de 2,7 milhões de exemplares por semana.
Direito à comunicação
Como se vê, na história da imprensa no Brasil, há continuidades e há rupturas e nem tudo é exatamente como se celebra. Deve-se ter cuidado com as versões do passado sobre Hipólito da Costa e seu Correio. Por outro lado, há razões de sobra para celebrar a ruptura na circularidade que até recentemente excluía grande parte da nossa população do espaço público criado pela mídia impressa.
O que se espera é que a história dos próximos anos possa ser construída em torno de novas continuidades e rupturas que contribuam para a consolidação do direito à comunicação e de uma verdadeira democracia entre nós.
* O autor é Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007) Fonte: Observatório da Imprensa