ÍNDIOS "INVISÍVEIS"
Um "furo" mundial e muita controvérsia
Luciano Martins Costa
Um "furo" mundial e muita controvérsia
Luciano Martins Costa
Saiu na primeira página de todos os grandes jornais brasileiros na sexta-feira (30/5), depois de publicada no site da BBC e no portal UOL, a notícia de que a Funai encontrou no Acre uma aldeia de índios ainda não contatados pelo homem branco e sem registro de relações com outras tribos. Daí para a frente, a notícia e algumas fotografias correram o mundo, a partir das agências Associated Press e Reuters, produzindo um frisson que repercutiu pelo noticiário televisivo brasileiro e internacional. Junto com a mensagem, porém, corre um debate sobre ética no jornalismo e propriedade intelectual.
Não há, porém, muito o que especular sobre o caso. O que há é um bom tema para a análise de direitos relacionados à informação. Quem deu o "furo", apresentando ao mundo a descoberta da equipe chefiada pelo sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior, foi o jornalista Altino Machado em seu blog pessoal.
Altino postou a notícia em seu blog e mandou uma versão mais completa para sua coluna na revista eletrônica Terra Magazine. Meirelles cedeu dois discos com cerca de 1.200 fotografias e concedeu uma entrevista, na casa do jornalista, gravada no dia 22 de maio. O texto original foi escrito na presença do sertanista. No dia seguinte, sexta-feira (23), pela manhã, o texto foi publicado no blog e o Terra Magazine, além do relato mais completo, distribuiu uma versão em espanhol para toda a área de cobertura do portal na América Latina, Estados Unidos e Espanha.
Critérios de cessão de direitos
O problema é que nenhum dos órgãos de imprensa que reproduziram a notícia, na semana passada, citou a fonte. Além disso, estabeleceu-se uma controvérsia paralela sobre a propriedade das fotografias. O repórter fotográfico Gleilson Miranda, escolhido para acompanhar a expedição, resolveu vender cópias das fotografias por 250 reais cada, alegando que os direitos são seus. Miranda é funcionário da estatal Agência de Notícias do Acre, fez as fotos com uma câmera da Secretaria de Comunicação do governo do Acre, a bordo de um avião do governo do Acre cedido ao sertanista Meirelles em missão oficial da Funai.
Para colocar as coisas em seus lugares, o chefe da Assessoria de Comunicação do governo do Acre, Itaan Arruda, distribuiu nota que diz o seguinte:
"Gostaria de informar que as imagens captadas por qualquer repórter-fotográfico ou repórter cinematográfico da assessoria de imprensa do governo do Acre pertencem ao povo do Acre. São imagens públicas. São patrimônios públicos. Em respeito ao povo do Acre (…) não nos é permitido lucro ou complementação de renda utilizando um patrimônio que não é privativo de ninguém exclusivamente. No entanto, vale ressaltar que o uso dessas imagens deve obedecer critérios de cessão que se iniciam com o contato óbvio e elementar com a assessoria de imprensa do governo ou de qualquer órgão que trabalhe em parceria conosco."
Algumas observações
O sertanista José Carlos Meirelles, que é coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira, também distribuiu comunicado declarando que "as fotos utilizadas no Blog do Altino e depois utilizadas no Terra Magazine foram por mim fornecidas ao sr. Altino Machado. Essas fotos são de propriedade da Fundação Nacional do Índio, enquanto os índios fotografados forem isolados, e não podem ser usadas para fins comerciais e muito menos comercializadas".
A controvérsia sobre os direitos ligados à fotografia será resolvida entre o governo do Acre, seu funcionário e a Funai. Algumas cópias correram pela imprensa internacional, creditadas à Associated Press (AP), que as havia reproduzido com a licença precária e desautorizada do fotógrafo Gleilson Miranda.
Se vale para o caso a legislação que se aplica à aquisição de outros produtos de origem ilegítima, cabe à AP explicar como pôde assumir como de sua propriedade direitos cuja autenticidade não se confirmam na origem. O fato é comum e deriva de certa "desatenção" de muitos editores quanto aos créditos corretos, uma vez que a imagem, caindo na rede, pode percorrer caminhos aleatórios que dificultam a definição de sua origem. A AP comprou os direitos de Gleilson sem checar se ele detinha esses direitos. Os editores recebem a foto via AP e transferem o crédito, e assim por diante.
Mas há algumas observações adicionais a serem feitas sobre essa história. A primeira é que o "furo" só foi percebido pela grande imprensa, e reproduzido por seus sites, uma semana depois de publicado no blog de Altino Machado. A segunda é que a imprensa brasileira "não viu" a versão original da notícia: a primeira versão do portal UOL dizia que "a divulgação das fotos foi feita pela Survival International", entidade que luta pela proteção de tribos isoladas. O site da BBC, uma das primeiras entre as mídias atrasadas na divulgação, replicou que "as fotos foram divulgadas pela Survival International, que apóia a política da Funai para povos isolados (…)" etc. Para completar o círculo, o jornal Página 20, de Rio Branco, Acre, onde vive o autor do "furo", publicou que "a notícia veio à tona por meio da agência BBC e foi veiculada com destaque em quase todos os jornais online (…)".
Longe das lentes e dos olhos
A história chegou também aos leitores de Le Monde, The Guardian, The New York Times, El País e muitos outros gigantes da mídia internacional. Posteriormente, sexta-feira (30/5), estava nas primeiras páginas da Folha de S.Paulo, do Estado de S.Paulo, do Globo e de outros jornais Brasil afora. A Folha foi o único diário que fez justiça, observando que "a Funai tirou mais de mil fotos. Meirelles decidiu repassar o material fotográfico ao jornalista Altino Machado, que publicou três fotos no site Terra Magazine. A idéia era sensibilizar o governo do Acre, que prometeu instalar um posto de vigilância na área, que virou alvo do garimpo ilegal".
Apenas um reparo: segundo Altino Machado, quem ameaça a tribo isolada não é o garimpo, mas as madeireiras ilegais que entram na Amazônia pela fronteira com o Peru – fato que ele noticiou na mesma época.
Além da constatação de que a imprensa, em geral, não confirma a origem de muita coisa que publica, entra no debate outra questão, levantada pelo sertanista Meirelles. A imagem dos índios pressupõe um direito que eles podem vir a exercer, se e quando decidirem aceitar o contato com os brancos. Por conta disso, o sertanista corria, nos últimos dias, a providenciar os registros para assegurar que, no futuro, esse direito não continue a ser vilipendiado.
No Acre, os índios que evitam o contato com brancos ou com tribos aculturadas são chamados de "invisíveis". O episódio da aldeia localizada na região do igarapé Xinane mostra que, diante de tanta falta de respeito, fazem bem em continuar longe das lentes e dos olhares do homem branco.
*O autor é Jornalista
Fonte: Observatório da Imprensa
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