HISTÓRIAS BEM CONTADAS
Descobrir a realidade, sem inventar
*Sergio Vilas Boas
A reportagem "La invención de da realidad" (do suplemento "Babelia", do El País, 12/7/2008) detecta uma tendência interessante no jornalismo diário hispânico: o crescimento da reportagem autoral, feita com profundidade, motivação e refinamento. A matéria insinua que a boa narrativa (histórias bem contadas) é um diferencial imbatível da mídia impressa ante a concorrência dos meios eletrônicos. Até porque esse tipo de jornalismo é incomum de se ver nos meios digitais, infelizmente.
No mundo hispânico, jornalista literário tem outro nome: cronista – aquele que relata (narra) a vida real. O termo não se aplica ao Brasil porque a nossa crônica, embora altamente convidativa, não se limita ao real. Entre nós, a crônica é um gênero tão híbrido e livre que o cronista pode ficcionalizar, se quiser. Mais: nossos cronistas operam de seus gabinetes. Já os "cronistas de língua espanhola", diferentemente, fazem amplo trabalho de campo e, ao honrar seus grandes mestres, têm reconquistado o espaço perdido com a febre da internet na década passada.
Os inúmeros jornalistas literários citados na reportagem do El País não desdenham dos relatos românticos dos absortos desbravadores dos tempos da colonização, como Bernal Díaz del Castillo e Fray Bartolomé de las Casas, e reconhecem Inca Garcilaso de la Vega como precursor da "crônica latino-americana". Não engolem inteira a história de que o Novo Jornalismo dos anos 1960 surgiu nos Estados Unidos. Ao contrário, reivindicam-no para José Martí, Manuel Gutiérrez Nájera e Rubén Darío, que no final do século 19 aplicavam a seus despachos jornalísticos o olhar perscrutador, a potência estilística e a pretensão literária "que agora volta a invadir revistas, tenta tomar os jornais e vem-se acoplando timidamente, porém com força, aos blogs".
Conversar, conversar
O livro La invención de la crónica, da venezuelana Susana Rotker, assinala que os "novos cronistas das Índias" têm dado rosto e cor às histórias do dia-a-dia a fim de aproximá-las dos leitores. Esses "escritores do real" olham para a realidade como se ela fosse um índice infinito de assuntos, no qual há espaço para o cotidiano e o popular, com histórias curtas ou heróicas; para a cultura ancestral ou a da boa comida; para as vidas que estão por trás – ou mesmo dentro – dos ídolos do esporte e das artes; para os entreveros do poder; para compartilhar a euforia das festas; e tentam entender o absurdo e o freak que escapam ao engessado reportar metódico dos noticiários.
Os canais de distribuição para o artesanato da boa reportagem literária hispânica atual são um punhado de revistas que, com grande esforço, estão cruzando fronteiras: Gatopardo (com mais de 200 mil exemplares no México, países andinos, América Central, Argentina, Chile e Uruguai) e Etiqueta Negra (10 mil exemplares nos Peru e países vizinhos). E também revistas eminentemente literárias como Letras Libres (México) e Elmalpensante (Colômbia).
A seção "Zona Crónica", da revista SoHoi (que lembra a Playboy), com cerca de 1 milhão de leitores em quatro países latino-americanos, ocupa em média trinta páginas por edição. The Clinic (Chile), Marcapasos (Venezuela) e Mano (Argentina) também têm apostado no jornalismo literário. Na verdade, quase todas essas publicações são uma adaptação das americanas The Vanity Fair, Harper’s, Esquire, The New Yorker e Atlantic.
E todas – algumas menos do que outras –, sublinha o texto do caderno "Babelia", incorporaram a suas equipes a figura do "editor à americana", profissional que discute, reescreve, orienta repórteres; que encomenda pautas baseadas em suas experiências diretas ou em suas intuições; que mantém com os repórteres uma relação de saudável cumplicidade.
Guillermo Osorno, editor da Gatopardo, acredita que desse modo "é possível haver uma transferência de conhecimento do escritor para o editor, estabelecendo-se então uma relação de confiança criativa". O "embate" entre o editor e o jornalista literário não é um confronto destrutivo. O que está em jogo é a eficácia do texto, algo que interessa a todos – editor, repórter, leitores.
"Depois de uma conversa, sempre sai algo melhor", acredita Osorno. Isso me lembra o lendário editor da New Yorker, William Shawn (1907-1992), que costumava mexer nos textos dos jornalistas, que lhe perguntavam: "Mas agora esse texto não mais meu". Ao que Shawn respondia: "É seu sim. Apenas ajudei-o a ser ainda mais seu".
Decisão estratégica
Contar boas histórias... Por que os jornais brasileiros de grande circulação ainda resistem a essa prerrogativa? Se essa pergunta for dirigida a repórteres e editores sufocados pelo dia-a-dia da notícia impressa, as respostas tendem a ser previsíveis: que falta tempo, dinheiro e qualificação; que jornalismo não é arte, e sim uma fórmula; que informar/opinar é a única função do jornalismo; que jornalismo não é literatura; que esse negócio de jornalismo literário (ou jornalismo narrativo) não existe; que importantes são os fatos, somente os fatos, nada mais que os fatos...
Descartadas as respostas que revelam ignorâncias, escapismos ou semânticas vazias, o que sobra é o "por quê?" de sempre. Há uma série de hipóteses possíveis e discutíveis para a timidez do Brasil no campo da reportagem em profundidade escrita com técnicas literárias.
Uma delas nos leva a crer que o jornalismo impresso brasileiro é historicamente superficial por opção. Essa hipótese estaria agravada pelas circunstâncias de hoje: matérias totalmente subservientes a abstrações (estatísticas, efemérides, ganchos, especulações) que resultam em desumanização.
A arte de humanizar o real – bordão que empregamos no site Texto Vivo, que edito – consiste exatamente em minimizar as abstrações em prol das histórias que envolvam diretamente a experiência de pessoas de carne, osso e alma. Pessoas que fazem (ou não fazem), que sentem, que sofrem, que se beneficiam, que vitimam, que perdem, que ganham, que erram, que superam, que se sacrificam, que tentam de uma forma, senão de outra.
A humanização do real consiste em tirar um pouco os holofotes dos personagens (independentemente de serem famosos ou não) que apenas falam para enfocar aqueles que se abrem para contar o que experimentaram e como. A razão de ser do jornalismo literário (ou narrativo) são os personagens. Sem personagens, não há narrativa. Refiro-me, claro, ao personagem como protagonista, posto mesmo em primeiro plano porque sua vivência é universalmente reveladora, e não para comprovar uma estatística.
Estamos falando do humano como razão de ser da matéria, ao ponto em que tudo o mais (dados estatísticos, históricos, socioculturais etc.) gira em torno dessa humanidade. Humanização não é uma técnica, é uma atitude; não é um modismo editorial, e sim uma decisão estratégica viável para a oxigenação do jornalismo impresso; não deveria ser uma retórica, e sim uma maneira prática e concreta de o repórter se posicionar no mundo a fim de observá-lo e compreendê-lo.
Resultados melhores
Com todas as pressões (concretas e retóricas), o jornalismo impresso não pode mais abdicar dessa prerrogativa que, entre tantas, lhe cabe: incluir pelo menos uma – uma – boa história bem contada todo santo dia em alguma editoria do jornal. A nova geração de jornalistas literários latino-americanos, por exemplo, não prima pela "escrita criativa" apenas. Os "cronistas" hispânicos têm tomado emprestado técnicas literárias – e não parecem dispostos a devolvê-las –, sim, mas é a apuração sólida que os distingue.
Outro dado importante é que venceram o medo de incluir deliberadamente o seu "eu" como sujeito da história, algo que os converte, em muitos casos, em uma espécie de "confidente", alguém que observa, escuta, respira, toca, sente, conta. Claro que não é condição sine qua non para se contar uma história essa inclusão do "eu" declarado. Até porque, mesmo quando não declarado, o "eu" do autor está sempre lá, claro e evidente.
O "eu" do autor só não é claramente perceptível quando ele/ela não esteve mesmo lá, quando não pisou com seus pés no mesmo chão dos personagens, quando não olhou dentro dos olhos deles. Aí não tem jeito. Se o objetivo é extrapolar a simples organização de dados factuais e oferecer ao leitor algo mais (uma história com ações, conflito e um desfecho), a falta de experiência direta do autor pode ser fatal.
Repare na edição nº 506 (30/7/2007) da Carta Capital, revista que não costuma primar pela humanização (seu cardápio é predominantemente cerebral). Há duas matérias no mínimo diferenciadas nessa edição: "Ubirajara calcula", na seção "Brasiliana", sobre um morador de rua que passou no concurso do Banco do Brasil; e "Nova direção", tradução de The Observer sobre o culto tardio ao automóvel na China.
Denominador comum entre esses dois textos é o fato de que não nos ficam dúvidas se os autores interagiram in loco com os protagonistas. Na matéria da Observer, especialmente, dá para sentirmos a repórter Carole Cadwalladr se movendo em campo, misturando-se entre as pessoas, levantando possibilidades e tendências, fazendo a sua leitura de mundo, com tudo o que isso implica.
Nossos jornais e revistas ainda pensam que sobreviverão lutando para ser bravamente ágeis dentro das limitações que têm. Mas acabam afundando-se em abstrações discursivas. Não há vivências, não há experiência direta, não há apuração sólida. O resultado dessa visão estreita é a oferta de hard news, apenas, ou como querem alguns donos de jornais, "a oferta do melhor resumo do dia anterior" (sic).
No entanto, teriam mais chances a longo prazo se, em vez de um samba de uma nota só, nos oferecessem um mix de notícias aprofundadas, análises, opiniões responsáveis e histórias humanizadas. Os jornais diários norte-americanos, por exemplo, têm publicado matérias de jornalismo literário e conseguido recuperar leitores, obter melhores resultados financeiros.
Samba e sinfonia
Muita gente no Brasil pensa, erroneamente, que o jornalismo dos diários norte-americanos resume-se àquele padrão típico do USA Today, o jornalismo da pirâmide invertida e do lide, do texto curto e fragmentado. Talvez essa idéia proceda do fato histórico de que foi dos Estados Unidos que o jornalismo brasileiro importou esse formato tão presente e disseminado nos nossos jornais até hoje.
Um olhar mais atento, porém, revela que o jornalismo norte-americano, ao contrário, reflete a multiplicidade cultural do país. Se a pirâmide invertida está muito presente no jornalismo de lá, também é fato que ela coexiste com o jornalismo literário e suas variantes. Há diários que abrem total espaço para essa modalidade, ou, na pior das hipóteses, abrem-se pelo menos para a prática de alguns atributos do jornalismo literário.
O leitor vai arranjar tempo de sobra para ler o jornal, sim, se dermos a ele algo de fato saboroso para ler, combatendo a velha "crença" de que o leitor não tem tempo para (e não gosta de) ler. A forma narrativa (histórias com princípio, meio e fim) proporciona, para os jornais, a tão almejada conectividade com o leitor. A narrativa é uma forma natural de contar as coisas, que habita a nossa consciência. Ler histórias é uma demanda humana universal.
O Brasil ainda está engatinhando nesse campo. Mas bons sinais já podem ser captados na revista piauí e na recém-lançada Brasileiros. A nossa Rolling Stone traz textos instigantes também, mas os melhores ainda são os traduzidos. Outro bom ateliê de reportagem narrativa é coordenado pela Academia Brasileira do Jornalismo Literário (ABJL), ONG da qual sou co-fundador. A maioria das produções de nossos alunos está disponível no textovivo.com.br. Outras estão no livro Jornalistas Literários (Summus, 2007), que organizei. Diários como Zero Hora, O Povo e Correio Brasiliense demonstram bom conhecimento dos valores das narrativas, tanto que têm conquistado prêmios em função disso.
É pouco para o tamanho e a diversidade do Brasil, mas significativo. Aqui ainda se travam batalhas semânticas improdutivas. Não se aceita bem o termo jornalismo narrativo porque ele seria "redundante". Todo texto jornalístico, acredita-se, narra algo, ainda que mal. Por outro lado, recusam a expressão jornalismo literário porque ela se confunde com "jornalismo sobre literatura". Já o termo não-ficção, por sua vez, além de ambíguo, teria de aglutinar gêneros muito distintos como a auto-ajuda e o ensaio...
Enquanto isso, perde-se o principal: o investimento em histórias humanizadas, livres de abstrações, que possam ajudar a transformar em sinfonia o tal samba de uma nota só (que não tem a complexidade da canção dos mestres Tom Jobim e Newton Mendonça). –Fonte: Observatório da Imprensa
* Jornalista, escritor e professor, autor de Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida (Unesp, no prelo) e Perfis (Summus), entre outros; co-fundador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e editor do Texto Vivo
Descobrir a realidade, sem inventar
*Sergio Vilas Boas
A reportagem "La invención de da realidad" (do suplemento "Babelia", do El País, 12/7/2008) detecta uma tendência interessante no jornalismo diário hispânico: o crescimento da reportagem autoral, feita com profundidade, motivação e refinamento. A matéria insinua que a boa narrativa (histórias bem contadas) é um diferencial imbatível da mídia impressa ante a concorrência dos meios eletrônicos. Até porque esse tipo de jornalismo é incomum de se ver nos meios digitais, infelizmente.
No mundo hispânico, jornalista literário tem outro nome: cronista – aquele que relata (narra) a vida real. O termo não se aplica ao Brasil porque a nossa crônica, embora altamente convidativa, não se limita ao real. Entre nós, a crônica é um gênero tão híbrido e livre que o cronista pode ficcionalizar, se quiser. Mais: nossos cronistas operam de seus gabinetes. Já os "cronistas de língua espanhola", diferentemente, fazem amplo trabalho de campo e, ao honrar seus grandes mestres, têm reconquistado o espaço perdido com a febre da internet na década passada.
Os inúmeros jornalistas literários citados na reportagem do El País não desdenham dos relatos românticos dos absortos desbravadores dos tempos da colonização, como Bernal Díaz del Castillo e Fray Bartolomé de las Casas, e reconhecem Inca Garcilaso de la Vega como precursor da "crônica latino-americana". Não engolem inteira a história de que o Novo Jornalismo dos anos 1960 surgiu nos Estados Unidos. Ao contrário, reivindicam-no para José Martí, Manuel Gutiérrez Nájera e Rubén Darío, que no final do século 19 aplicavam a seus despachos jornalísticos o olhar perscrutador, a potência estilística e a pretensão literária "que agora volta a invadir revistas, tenta tomar os jornais e vem-se acoplando timidamente, porém com força, aos blogs".
Conversar, conversar
O livro La invención de la crónica, da venezuelana Susana Rotker, assinala que os "novos cronistas das Índias" têm dado rosto e cor às histórias do dia-a-dia a fim de aproximá-las dos leitores. Esses "escritores do real" olham para a realidade como se ela fosse um índice infinito de assuntos, no qual há espaço para o cotidiano e o popular, com histórias curtas ou heróicas; para a cultura ancestral ou a da boa comida; para as vidas que estão por trás – ou mesmo dentro – dos ídolos do esporte e das artes; para os entreveros do poder; para compartilhar a euforia das festas; e tentam entender o absurdo e o freak que escapam ao engessado reportar metódico dos noticiários.
Os canais de distribuição para o artesanato da boa reportagem literária hispânica atual são um punhado de revistas que, com grande esforço, estão cruzando fronteiras: Gatopardo (com mais de 200 mil exemplares no México, países andinos, América Central, Argentina, Chile e Uruguai) e Etiqueta Negra (10 mil exemplares nos Peru e países vizinhos). E também revistas eminentemente literárias como Letras Libres (México) e Elmalpensante (Colômbia).
A seção "Zona Crónica", da revista SoHoi (que lembra a Playboy), com cerca de 1 milhão de leitores em quatro países latino-americanos, ocupa em média trinta páginas por edição. The Clinic (Chile), Marcapasos (Venezuela) e Mano (Argentina) também têm apostado no jornalismo literário. Na verdade, quase todas essas publicações são uma adaptação das americanas The Vanity Fair, Harper’s, Esquire, The New Yorker e Atlantic.
E todas – algumas menos do que outras –, sublinha o texto do caderno "Babelia", incorporaram a suas equipes a figura do "editor à americana", profissional que discute, reescreve, orienta repórteres; que encomenda pautas baseadas em suas experiências diretas ou em suas intuições; que mantém com os repórteres uma relação de saudável cumplicidade.
Guillermo Osorno, editor da Gatopardo, acredita que desse modo "é possível haver uma transferência de conhecimento do escritor para o editor, estabelecendo-se então uma relação de confiança criativa". O "embate" entre o editor e o jornalista literário não é um confronto destrutivo. O que está em jogo é a eficácia do texto, algo que interessa a todos – editor, repórter, leitores.
"Depois de uma conversa, sempre sai algo melhor", acredita Osorno. Isso me lembra o lendário editor da New Yorker, William Shawn (1907-1992), que costumava mexer nos textos dos jornalistas, que lhe perguntavam: "Mas agora esse texto não mais meu". Ao que Shawn respondia: "É seu sim. Apenas ajudei-o a ser ainda mais seu".
Decisão estratégica
Contar boas histórias... Por que os jornais brasileiros de grande circulação ainda resistem a essa prerrogativa? Se essa pergunta for dirigida a repórteres e editores sufocados pelo dia-a-dia da notícia impressa, as respostas tendem a ser previsíveis: que falta tempo, dinheiro e qualificação; que jornalismo não é arte, e sim uma fórmula; que informar/opinar é a única função do jornalismo; que jornalismo não é literatura; que esse negócio de jornalismo literário (ou jornalismo narrativo) não existe; que importantes são os fatos, somente os fatos, nada mais que os fatos...
Descartadas as respostas que revelam ignorâncias, escapismos ou semânticas vazias, o que sobra é o "por quê?" de sempre. Há uma série de hipóteses possíveis e discutíveis para a timidez do Brasil no campo da reportagem em profundidade escrita com técnicas literárias.
Uma delas nos leva a crer que o jornalismo impresso brasileiro é historicamente superficial por opção. Essa hipótese estaria agravada pelas circunstâncias de hoje: matérias totalmente subservientes a abstrações (estatísticas, efemérides, ganchos, especulações) que resultam em desumanização.
A arte de humanizar o real – bordão que empregamos no site Texto Vivo, que edito – consiste exatamente em minimizar as abstrações em prol das histórias que envolvam diretamente a experiência de pessoas de carne, osso e alma. Pessoas que fazem (ou não fazem), que sentem, que sofrem, que se beneficiam, que vitimam, que perdem, que ganham, que erram, que superam, que se sacrificam, que tentam de uma forma, senão de outra.
A humanização do real consiste em tirar um pouco os holofotes dos personagens (independentemente de serem famosos ou não) que apenas falam para enfocar aqueles que se abrem para contar o que experimentaram e como. A razão de ser do jornalismo literário (ou narrativo) são os personagens. Sem personagens, não há narrativa. Refiro-me, claro, ao personagem como protagonista, posto mesmo em primeiro plano porque sua vivência é universalmente reveladora, e não para comprovar uma estatística.
Estamos falando do humano como razão de ser da matéria, ao ponto em que tudo o mais (dados estatísticos, históricos, socioculturais etc.) gira em torno dessa humanidade. Humanização não é uma técnica, é uma atitude; não é um modismo editorial, e sim uma decisão estratégica viável para a oxigenação do jornalismo impresso; não deveria ser uma retórica, e sim uma maneira prática e concreta de o repórter se posicionar no mundo a fim de observá-lo e compreendê-lo.
Resultados melhores
Com todas as pressões (concretas e retóricas), o jornalismo impresso não pode mais abdicar dessa prerrogativa que, entre tantas, lhe cabe: incluir pelo menos uma – uma – boa história bem contada todo santo dia em alguma editoria do jornal. A nova geração de jornalistas literários latino-americanos, por exemplo, não prima pela "escrita criativa" apenas. Os "cronistas" hispânicos têm tomado emprestado técnicas literárias – e não parecem dispostos a devolvê-las –, sim, mas é a apuração sólida que os distingue.
Outro dado importante é que venceram o medo de incluir deliberadamente o seu "eu" como sujeito da história, algo que os converte, em muitos casos, em uma espécie de "confidente", alguém que observa, escuta, respira, toca, sente, conta. Claro que não é condição sine qua non para se contar uma história essa inclusão do "eu" declarado. Até porque, mesmo quando não declarado, o "eu" do autor está sempre lá, claro e evidente.
O "eu" do autor só não é claramente perceptível quando ele/ela não esteve mesmo lá, quando não pisou com seus pés no mesmo chão dos personagens, quando não olhou dentro dos olhos deles. Aí não tem jeito. Se o objetivo é extrapolar a simples organização de dados factuais e oferecer ao leitor algo mais (uma história com ações, conflito e um desfecho), a falta de experiência direta do autor pode ser fatal.
Repare na edição nº 506 (30/7/2007) da Carta Capital, revista que não costuma primar pela humanização (seu cardápio é predominantemente cerebral). Há duas matérias no mínimo diferenciadas nessa edição: "Ubirajara calcula", na seção "Brasiliana", sobre um morador de rua que passou no concurso do Banco do Brasil; e "Nova direção", tradução de The Observer sobre o culto tardio ao automóvel na China.
Denominador comum entre esses dois textos é o fato de que não nos ficam dúvidas se os autores interagiram in loco com os protagonistas. Na matéria da Observer, especialmente, dá para sentirmos a repórter Carole Cadwalladr se movendo em campo, misturando-se entre as pessoas, levantando possibilidades e tendências, fazendo a sua leitura de mundo, com tudo o que isso implica.
Nossos jornais e revistas ainda pensam que sobreviverão lutando para ser bravamente ágeis dentro das limitações que têm. Mas acabam afundando-se em abstrações discursivas. Não há vivências, não há experiência direta, não há apuração sólida. O resultado dessa visão estreita é a oferta de hard news, apenas, ou como querem alguns donos de jornais, "a oferta do melhor resumo do dia anterior" (sic).
No entanto, teriam mais chances a longo prazo se, em vez de um samba de uma nota só, nos oferecessem um mix de notícias aprofundadas, análises, opiniões responsáveis e histórias humanizadas. Os jornais diários norte-americanos, por exemplo, têm publicado matérias de jornalismo literário e conseguido recuperar leitores, obter melhores resultados financeiros.
Samba e sinfonia
Muita gente no Brasil pensa, erroneamente, que o jornalismo dos diários norte-americanos resume-se àquele padrão típico do USA Today, o jornalismo da pirâmide invertida e do lide, do texto curto e fragmentado. Talvez essa idéia proceda do fato histórico de que foi dos Estados Unidos que o jornalismo brasileiro importou esse formato tão presente e disseminado nos nossos jornais até hoje.
Um olhar mais atento, porém, revela que o jornalismo norte-americano, ao contrário, reflete a multiplicidade cultural do país. Se a pirâmide invertida está muito presente no jornalismo de lá, também é fato que ela coexiste com o jornalismo literário e suas variantes. Há diários que abrem total espaço para essa modalidade, ou, na pior das hipóteses, abrem-se pelo menos para a prática de alguns atributos do jornalismo literário.
O leitor vai arranjar tempo de sobra para ler o jornal, sim, se dermos a ele algo de fato saboroso para ler, combatendo a velha "crença" de que o leitor não tem tempo para (e não gosta de) ler. A forma narrativa (histórias com princípio, meio e fim) proporciona, para os jornais, a tão almejada conectividade com o leitor. A narrativa é uma forma natural de contar as coisas, que habita a nossa consciência. Ler histórias é uma demanda humana universal.
O Brasil ainda está engatinhando nesse campo. Mas bons sinais já podem ser captados na revista piauí e na recém-lançada Brasileiros. A nossa Rolling Stone traz textos instigantes também, mas os melhores ainda são os traduzidos. Outro bom ateliê de reportagem narrativa é coordenado pela Academia Brasileira do Jornalismo Literário (ABJL), ONG da qual sou co-fundador. A maioria das produções de nossos alunos está disponível no textovivo.com.br. Outras estão no livro Jornalistas Literários (Summus, 2007), que organizei. Diários como Zero Hora, O Povo e Correio Brasiliense demonstram bom conhecimento dos valores das narrativas, tanto que têm conquistado prêmios em função disso.
É pouco para o tamanho e a diversidade do Brasil, mas significativo. Aqui ainda se travam batalhas semânticas improdutivas. Não se aceita bem o termo jornalismo narrativo porque ele seria "redundante". Todo texto jornalístico, acredita-se, narra algo, ainda que mal. Por outro lado, recusam a expressão jornalismo literário porque ela se confunde com "jornalismo sobre literatura". Já o termo não-ficção, por sua vez, além de ambíguo, teria de aglutinar gêneros muito distintos como a auto-ajuda e o ensaio...
Enquanto isso, perde-se o principal: o investimento em histórias humanizadas, livres de abstrações, que possam ajudar a transformar em sinfonia o tal samba de uma nota só (que não tem a complexidade da canção dos mestres Tom Jobim e Newton Mendonça). –Fonte: Observatório da Imprensa
* Jornalista, escritor e professor, autor de Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida (Unesp, no prelo) e Perfis (Summus), entre outros; co-fundador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e editor do Texto Vivo
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