segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

DE PRIMEIRA & DE SEGUNDA


Muito interessante este artigo do Médico Veterinário Pedro Eduardo de Felício


A elegante senhora, depois de mandar pesar uma peça de filé, pede um quilo de carne de segunda para preparar um delicioso guisado ao vinho tinto e ervas finas. O freguês menos sofisticado diz que vai levar uma carne de segunda porque sai mais barato e dá um excelente picadinho.
Ambos estão certos e é preciso respeitar a maneira de se expressar do consumidor. Desnecessário explicar que não existe carne de segunda,que toda carne é de primeira se o gado for saudável e abatido em bons frigoríficos ou, como dizem alguns, o gado é que é de primeira ou de segunda, não a carne, que, se for preparada por quem conhece alguns truques culinários, ficará ótima. O consumidor sempre tem razão, o importante é fazer a venda.
Embora seja justificável a proposição que alguns fazem de que é preciso acabar com a expressão "carne de segunda" porque soa depreciativa e, conseqüentemente, dificulta as vendas de alguns cortes cárneos ou, no mínimo, contribui para manter baixos os seus preços, o fato é que as categorias de "primeira" e de "segunda", utilizadas no varejo há muitos anos, servem para resumir em poucas palavras o que demandaria tempo para explicar.
Segundo a explicação provavelmente mais popular, a carne de primeira é macia e a de segunda é dura, distinção que pode ser válida apenas se ambas forem preparadas em calor seco por um tempo curto, ou seja, por um método rápido de cozimento, como fritar ou grelhar. Ainda assim, há exceções _por exemplo, um bife de chã de fora, que é um corte "de primeira", não é recomendável para cozimento rápido, pois ficará mais duro do que um bife de paleta, que é uma carne "de segunda". Porém, se o cozimento for feito com calor úmido por um tempo longo, método lento em que se acrescenta umidade ou se impede a perda dela para o meio externo, por mais dura que seja, a carne de segunda _como a de cupim, a de peito, a de costela ou a de músculo_ ficará mais macia do que uma carne de primeira, como a de contrafilé ou de alcatra. Na verdade, o que vale mesmo é a habilidade culinária, mas também é fato que o método lento demanda tempo e hoje em dia ninguém quer gastá-lo na cozinha.
Pode-se também classificar como carne de primeira a do quarto traseiro, sem a ponta de agulha, denominado pistola ou traseiro especial (TE), e como de segunda a do quarto dianteiro (QD) e a da ponta de agulha (PA), ou seja, o flanco e a costela. Nas carcaças de novilhos, as carnes do TE representam 48%, e as do QD e da PA, os 52% restantes. É assim que os frigoríficos dividem as carcaças e assim são dadas as cotações de preços da carne com osso, sendo a do TE mais cara do que as do QD e da PA, que têm preços semelhantes. Mas aí vem uma ressalva: nem toda carne do TE é de primeira, pois a capa de contrafilé, o
"músculo" e os retalhos da desossa são considerados de segunda.
As duas explicações são válidas, porque os cortes do QD e da PA em geral são realmente os de carne mais dura na preparação com calor seco por tempo curto, e a razão disso é o seu teor de colágeno, uma proteína abundante no organismo, que se gelatiniza pelo calor na presença de umidade, mas se contrai e enrijece com calor seco. As carnes de segunda provêm de músculos relativamente pequenos que, reunidos em grupos, têm uma função importante na locomoção do animal e na sustentação de certas estruturas, como a cabeça e os órgãos torácicos e abdominais. Por esse motivo, têm um alto conteúdo de colágeno, que lhes confere resistência. Já as carnes de primeira provêm de músculos relativamente grandes e individualizados, situados nas regiões do dorso, da pelve e da coxa, que são pouco solicitados e, em geral, têm um teor de colágeno bem menor. Assim, na carne de primeira, a maciez ou a dureza depende mais das células musculares, enquanto na de segunda depende mais do colágeno.
O que fazer, então, se o objetivo é agregar valor à carne de segunda? A resposta talvez seja deixar o mercado seguir seu curso normal, porque a tendência de aumento das vendas em auto-serviços e as inovações nas técnicas de exposição das porções individuais ou familiares, mais o fato de que os filhos já não estão aprendendo com os pais a comprar e a preparar a carne, vão encarregar-se, com o passar do tempo, de extinguir a diferenciação entre "primeira" e "segunda".
Mas é possível acelerar um pouco o processo, incentivando melhorias na apresentação e na exposição das porções pré-embaladas, segundo uma estratificação por método de cozimento, como carne "para assar", "para grelhar", "para assado de panela". Outro meio é de fazer isso é a divulgação de receitas culinárias cujo ingrediente principal sejam as carnes que demandam mais tempo de preparação. A divulgação do método de cozimento de cada corte é da maior importância, pois um consumidor que leve para casa uma bandeja com vistosas fatias de acém ou de lagarto e, não tendo sido instruído a respeito da forma adequada de preparo, se ponha a fritá-las em frigideira ou em chapa preaquecida pode ficar muito decepcionado com o resultado.
A modernização do mercado tende a acabar com as expressões carne de primeira e de segunda, mas os cortes continuarão servindo a diferentes finalidades culinárias porque são estruturalmente diferentes, e isso não se pode mudar.


Médico Veterinário Pedro Eduardo de Felício
FEA/UNICAMP
Membro do Comitê Técnico do SIC – Serviço de Informação da Carne

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