COBERTURA DE EDUCAÇÃO
Professores de bico calado
* Márcio Tonetti
Jornalistas que já trabalharam com reportagens envolvendo a área de educação sabem das dificuldades de encontrar professores da rede pública de ensino dispostos a abrir a boca quando a pauta trata de qualidade do ensino, problemas de gestão escolar ou condições de trabalho. Poucos falam ou denunciam. E quando aceitam dar declarações impõem restrições: na maioria dos casos, exigem que o jornalista preserve a identidade da fonte. Há, evidentemente, os corajosos, aqueles que abrem o bico custe o que custar. Mas não é essa a regra. O que mais se ouve são respostas evasivas, do tipo "não posso falar", "não quero falar", "isso vai me trazer problemas".
Salvo as exceções em que o assunto se relaciona com projetos pontuais, que projetam a imagem de uma escola, por exemplo, ou não a maculam, impera o silêncio do professorado em matérias que abordam políticas públicas educacionais. Mas mesmo em caso de matérias positivas, nem sempre é fácil conseguir a colaboração dos docentes.
Os educadores são protagonistas na implantação e execução de políticas públicas, são fontes primárias de informação, mas não têm presença na mídia. Nas reportagens aparecem pais, alunos, empresários da educação, fontes oficiais (como representantes do MEC, das Secretarias de Educação), mas raramente os professores.
Abuso ou insubordinação
Na terça-feira (7/10), participei do debate "Fala educador! Fala educadora!", organizado pela Ação Educativa, em parceria com a ONG Artigo 19 e o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, que levantou uma das causas desse silêncio dos professores: eles não podem, por lei, falar sem autorização de autoridades governamentais. Pesquisas desenvolvidas por estas organizações identificaram dispositivos na legislação brasileira que limitam a liberdade de expressão de servidores públicos. Uma dessas leis da mordaça encontra-se no Estatuto dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, de 1968, ano do AI-5. Lamentavelmente, os resquícios da ditadura existem até hoje. O artigo 242 desse estatuto proíbe os servidores públicos de se referirem "depreciativamente" aos atos da administração ou às autoridades constituídas.
"Artigo 242 – Ao funcionário é proibido: I - referir-se depreciativamente, em informação, parecer ou despacho, ou pela imprensa, ou qualquer meio de divulgação, às autoridades constituídas e aos atos da Administração, podendo, porém, em trabalho devidamente assinado, apreciá-los sob o aspecto doutrinário e da organização e eficiência do serviço; (...) VI - promover manifestações de apreço ou desapreço dentro da repartição, ou tornar-se solidário com elas."
O problema não está só em São Paulo. Em 18 estados brasileiros foram encontradas legislações semelhantes. O texto, em alguns casos, apresenta diferenças, mas o caráter proibitivo é o mesmo. Em algumas dessas regiões do país, as normas não remontam à época da ditadura. Ao contrário de São Paulo, são legislações recentes, posteriores à Constituição, o que nos deixa apreensivos quanto ao caráter de algumas autoridades que legislam no Brasil atualmente. No Amapá, o estatuto foi promulgado em 1993. No Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Pará, em 1994. O da Paraíba está mais fresco ainda: é de 2003.
"Referir-se depreciativamente" pode abrir margens para inúmeras interpretações. Uma crítica de um professor a uma medida que poderá até prejudicar a escola pode ser identificada como motivo de punição. Uma opinião sobre a má qualidade de ensino também pode ser entendida como um abuso, como insubordinação.
Direito à informação tolhido
São recorrentes os casos de docentes penalizados (processados ou afastados) ou intimidados por concederem entrevistas. No debate do qual participei, o professor Josafá Rehem, da rede pública em São Paulo, relatou uma experiência que vivenciou recentemente. Após uma entrevista concedida a um repórter da rádio CBN, tratando sobre falta de professores e o acúmulo de funções, o educador recebeu da Diretoria Regional de Educação um documento (uma "folha de informação") impelindo-o a dar explicações.
Restrições como essas são ilegítimas, inconstitucionais, agridem a democracia e abusam do direito à liberdade de expressão, previstos na Constituição Federal brasileira (artigo 5º), bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19). O jornalismo é prejudicado: (1) por contar com um número restrito de professores que aceitam falar, as matérias citam sempre as mesmas pessoas – por isso, a imprensa não reflete a pluralidade de opiniões; (2) por utilizar de modo indiscriminado informações sem paternidade, sem a identificação da fonte – embora o anonimato seja um recurso justificável em algumas circunstâncias, limita a credibilidade da informação e pode servir de instrumento para entrevistados mal-intencionados transmitirem ao jornalista informações maliciosas e infundadas, sem arcar com a responsabilidade pelo que disseram. Mas, sobretudo, o cidadão é prejudicado por ter o seu direito à informação tolhido.
Uma cultura perpetuada
O jornalismo não pode ficar refém de assessorias de imprensa das secretarias de Educação. Precisa ter passe livre para se relacionar com a escola e com os professores. Hoje, para um jornalista entrar numa escola precisa ter autorização da secretaria estadual de Educação. O diretor de uma escola pode até possibilitar a entrada da imprensa, mas estará sujeito a penalidades dependendo do teor da informação que for publicada.
Embora em muitos municípios do interior não existam normas formalizadas, dando conta dessas proibições, o clima de repressão é expressivo. Ainda nesta semana, duas alunas de jornalismo reclamavam que não estavam conseguindo entrevistar responsáveis por creches na região. Elas procuravam informações relativas à existência ou não de vagas. Ninguém quis dar depoimentos. A maioria dos servidores públicos receia que uma declaração concernente a uma denúncia ou crítica possa custar-lhes o emprego.
Existindo uma legislação ou não, na prática muitos governantes locais não gostam da transparência e calam ou abafam aqueles que tentam colocar os fatos a limpo. Mesmo como representantes da sociedade, fogem de qualquer escrutínio. Jornalistas que pegam no pé são odiados. Para conseguir falar com certos personagens da administração municipal é uma maratona. Nunca estão, sempre se encontram ocupados ou, quando se pronunciam, o fazem mediante suas assessorias de imprensa (raramente compostas por jornalistas, por sinal). Em determinadas ocasiões, é de perder as contas do número de telefonemas feitos para, enfim, realizar a entrevista. Se o repórter os encontra indispostos e insiste, não raro, batem o telefone.
E assim essa cultura é perpetuada, mesmo porque os próprios jornais locais se colocam numa condição passiva, dependentes que são das receitas gordas provenientes das prefeituras.
* Jornalista, professor de Jornalismo no Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho) e diretor de Redação da Agência Brasileira de Jornalismo, Campinas, SP
Professores de bico calado
* Márcio Tonetti
Jornalistas que já trabalharam com reportagens envolvendo a área de educação sabem das dificuldades de encontrar professores da rede pública de ensino dispostos a abrir a boca quando a pauta trata de qualidade do ensino, problemas de gestão escolar ou condições de trabalho. Poucos falam ou denunciam. E quando aceitam dar declarações impõem restrições: na maioria dos casos, exigem que o jornalista preserve a identidade da fonte. Há, evidentemente, os corajosos, aqueles que abrem o bico custe o que custar. Mas não é essa a regra. O que mais se ouve são respostas evasivas, do tipo "não posso falar", "não quero falar", "isso vai me trazer problemas".
Salvo as exceções em que o assunto se relaciona com projetos pontuais, que projetam a imagem de uma escola, por exemplo, ou não a maculam, impera o silêncio do professorado em matérias que abordam políticas públicas educacionais. Mas mesmo em caso de matérias positivas, nem sempre é fácil conseguir a colaboração dos docentes.
Os educadores são protagonistas na implantação e execução de políticas públicas, são fontes primárias de informação, mas não têm presença na mídia. Nas reportagens aparecem pais, alunos, empresários da educação, fontes oficiais (como representantes do MEC, das Secretarias de Educação), mas raramente os professores.
Abuso ou insubordinação
Na terça-feira (7/10), participei do debate "Fala educador! Fala educadora!", organizado pela Ação Educativa, em parceria com a ONG Artigo 19 e o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, que levantou uma das causas desse silêncio dos professores: eles não podem, por lei, falar sem autorização de autoridades governamentais. Pesquisas desenvolvidas por estas organizações identificaram dispositivos na legislação brasileira que limitam a liberdade de expressão de servidores públicos. Uma dessas leis da mordaça encontra-se no Estatuto dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, de 1968, ano do AI-5. Lamentavelmente, os resquícios da ditadura existem até hoje. O artigo 242 desse estatuto proíbe os servidores públicos de se referirem "depreciativamente" aos atos da administração ou às autoridades constituídas.
"Artigo 242 – Ao funcionário é proibido: I - referir-se depreciativamente, em informação, parecer ou despacho, ou pela imprensa, ou qualquer meio de divulgação, às autoridades constituídas e aos atos da Administração, podendo, porém, em trabalho devidamente assinado, apreciá-los sob o aspecto doutrinário e da organização e eficiência do serviço; (...) VI - promover manifestações de apreço ou desapreço dentro da repartição, ou tornar-se solidário com elas."
O problema não está só em São Paulo. Em 18 estados brasileiros foram encontradas legislações semelhantes. O texto, em alguns casos, apresenta diferenças, mas o caráter proibitivo é o mesmo. Em algumas dessas regiões do país, as normas não remontam à época da ditadura. Ao contrário de São Paulo, são legislações recentes, posteriores à Constituição, o que nos deixa apreensivos quanto ao caráter de algumas autoridades que legislam no Brasil atualmente. No Amapá, o estatuto foi promulgado em 1993. No Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Pará, em 1994. O da Paraíba está mais fresco ainda: é de 2003.
"Referir-se depreciativamente" pode abrir margens para inúmeras interpretações. Uma crítica de um professor a uma medida que poderá até prejudicar a escola pode ser identificada como motivo de punição. Uma opinião sobre a má qualidade de ensino também pode ser entendida como um abuso, como insubordinação.
Direito à informação tolhido
São recorrentes os casos de docentes penalizados (processados ou afastados) ou intimidados por concederem entrevistas. No debate do qual participei, o professor Josafá Rehem, da rede pública em São Paulo, relatou uma experiência que vivenciou recentemente. Após uma entrevista concedida a um repórter da rádio CBN, tratando sobre falta de professores e o acúmulo de funções, o educador recebeu da Diretoria Regional de Educação um documento (uma "folha de informação") impelindo-o a dar explicações.
Restrições como essas são ilegítimas, inconstitucionais, agridem a democracia e abusam do direito à liberdade de expressão, previstos na Constituição Federal brasileira (artigo 5º), bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19). O jornalismo é prejudicado: (1) por contar com um número restrito de professores que aceitam falar, as matérias citam sempre as mesmas pessoas – por isso, a imprensa não reflete a pluralidade de opiniões; (2) por utilizar de modo indiscriminado informações sem paternidade, sem a identificação da fonte – embora o anonimato seja um recurso justificável em algumas circunstâncias, limita a credibilidade da informação e pode servir de instrumento para entrevistados mal-intencionados transmitirem ao jornalista informações maliciosas e infundadas, sem arcar com a responsabilidade pelo que disseram. Mas, sobretudo, o cidadão é prejudicado por ter o seu direito à informação tolhido.
Uma cultura perpetuada
O jornalismo não pode ficar refém de assessorias de imprensa das secretarias de Educação. Precisa ter passe livre para se relacionar com a escola e com os professores. Hoje, para um jornalista entrar numa escola precisa ter autorização da secretaria estadual de Educação. O diretor de uma escola pode até possibilitar a entrada da imprensa, mas estará sujeito a penalidades dependendo do teor da informação que for publicada.
Embora em muitos municípios do interior não existam normas formalizadas, dando conta dessas proibições, o clima de repressão é expressivo. Ainda nesta semana, duas alunas de jornalismo reclamavam que não estavam conseguindo entrevistar responsáveis por creches na região. Elas procuravam informações relativas à existência ou não de vagas. Ninguém quis dar depoimentos. A maioria dos servidores públicos receia que uma declaração concernente a uma denúncia ou crítica possa custar-lhes o emprego.
Existindo uma legislação ou não, na prática muitos governantes locais não gostam da transparência e calam ou abafam aqueles que tentam colocar os fatos a limpo. Mesmo como representantes da sociedade, fogem de qualquer escrutínio. Jornalistas que pegam no pé são odiados. Para conseguir falar com certos personagens da administração municipal é uma maratona. Nunca estão, sempre se encontram ocupados ou, quando se pronunciam, o fazem mediante suas assessorias de imprensa (raramente compostas por jornalistas, por sinal). Em determinadas ocasiões, é de perder as contas do número de telefonemas feitos para, enfim, realizar a entrevista. Se o repórter os encontra indispostos e insiste, não raro, batem o telefone.
E assim essa cultura é perpetuada, mesmo porque os próprios jornais locais se colocam numa condição passiva, dependentes que são das receitas gordas provenientes das prefeituras.
* Jornalista, professor de Jornalismo no Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho) e diretor de Redação da Agência Brasileira de Jornalismo, Campinas, SP
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