quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Tv em Questão

TELENOVELA E VIDA REAL

A desgraça que todo mundo vê

* Samira Moratti

Qual a diferença entre o que é retratado nas novelas e o que ocorre na vida real? Muitos irão dizer que novela e vida real são distintas, uma vez que na novela a história contada é ficção, enquanto que as diversas "histórias" contadas nos telejornais são fatos concretos. Outros, porém, dirão que muitas novelas já retrataram fatos ocorridos na realidade e que, mesmo sendo ficcional, muitos desses fatos relembram acontecimentos na vida de qualquer ser humano. As novelas sempre foram sucesso na vida das pessoas, seja para entretenimento puro e simples depois de um dia estafante de trabalho, seja para acompanhá-las com "seriedade" (já que muitas pessoas transformaram o hábito de ver novelas em parte de sua vivência).
O que se deve atentar, no entanto, é que além de existirem na sociedade os "acompanhantes profissionais" de novelas – e aqui o público não se restringe somente às donas-de-casa, como comumente se imagina –, também há aquelas pessoas que vêem algumas cenas por dia, sem acompanhar fielmente, com a desculpa de que a novela os eleva a outro patamar, tirando-os do sufoco diário, do estresse e dos problemas vividos no cotidiano. Contudo, uma questão é pertinente: qual a diferença entre as desgraças vividas na novela, e as desgraças vividas no cotidiano real?

Certas "desgraças" previsíveis

De acordo Inimá Simões no livro A nossa TV brasileira, publicado pelo Senac São Paulo Editora, desde a década de 1960 a novela se concretizou como programa de entretenimento. Com a veiculação de O Direito de Nascer, na TV Tupi, os brasileiros apaixonaram-se pelo vício de acompanhar a vida do outro, seus pensamentos e vivências. Parafraseando o autor: "Os empresários tomam consciência então de que a telenovela cria hábitos – o que era impossível antes de sua transmissão diária – e sua audiência elevada, somada à mobilização popular, implica a majoração dos preços dos intervalos comerciais, com resultados óbvios." Ou seja, além de entreter o público, a novela surge, então, com o poder soberano de gerar lucro tanto às emissoras que as veiculam quanto aos patrocinadores que utilizam seus intervalos para divulgar produtos.
O hábito de acompanhar capítulo por capítulo das novelas é bem antigo e rende sucesso. Basta verificar a quantidade de novelas existentes, nas mais variadas emissoras, principalmente na Rede Globo, que tem como carro-chefe, entre outras atrações, as telenovelas. Sejam reprises ou novas tramas, o brasileiro – homem ou mulher, criança ou idoso – acaba por também inserir tal programa em sua lista de entretenimento.
Todavia, retornando à questão levantada no início deste artigo, o que não se entende é o porquê das desgraças apontadas nas dramaturgias renderem audiência. Uma das explicações seria pelo fato de se tratar de ficção, mas o leitor deve atentar que além de fatos inusitados, as novelas retratam dramas possíveis de serem realizados, seja uma traição – entre companheiro de relacionamento, trabalho ou amizade –, seja um acidente etc. Acompanhando os capítulos das telenovelas Malhação, Ciranda de Pedra e Três irmãs, todas exibidas na Rede Globo, especificamente no dia 23 de setembro, constatou-se a existência de certas "desgraças" descritas a seguir.

Ver tragédias sem refletir

Em Malhação, a irmã "má" de Angelina (Sophie Charlotte), Débora (Nathalia Dill), seqüestra o sobrinho, levando-o para um passeio sem a autorização da mãe. Presume-se, e eis que ocorre que, no decorrer do capítulo, Angelina descobre o fato e se apavora com a situação; em Ciranda de Pedra, as irmãs Otávia e Virgínia questionam o pai, o poderoso advogado Natércio (Daniel Dantas), sobre o paradeiro da mãe, Laura (Ana Paula Arósio), internada secretamente, contra a vontade, em uma casa de repouso. No local, Laura vive "o pão que o diabo amassou" nas mãos de Frau Herta (Ana Beatriz Nogueira), governanta da casa da família que, por inveja, sonha em ocupar o lugar da patroa; Já em Três irmãs, Waldete (Regina Duarte) é contratada misteriosamente como governanta de Violeta (Vera Holtz), sua inimiga. O feito se dá, aparentemente, devido a uma chantagem, já que Waldete sabe demais sobre a vida de Violeta.
Enfim, após breve resumo dos capítulos, o que se percebe são tramas conturbadas, onde o ódio e injustiça imperam. O que isso traz de benefício a um cidadão que resolve optar por ver uma novela ao invés do telejornal, uma vez que este último retrata "muitas desgraças reais"? Por que é mais ameno visualizar a desgraça do outro, mesmo sendo ficção, do que as reais? E ainda, de que adianta apenas ver tragédias pessoais retratadas nos telejornais, sem indagar ou refletir a respeito?

Alienação no Brasil

O contraditório é que fatos como o caso Isabella Nardoni, ocorrido este ano, provaram que, de certa forma, tragédias reais também podem se transformar em novelas, ou em motivação. A cobertura jornalística do caso, feita por diversos jornais, revistas, emissoras de TV e rádio, foi acompanhada por milhares de brasileiros. Alguns organizaram movimentos em prol da prisão dos suspeitos de assassinar a menina. Já alguns dramas ficcionais, como a atual novela das oito da Rede Globo, A Favorita, não cativaram o público, seja pelo enredo previsível, seja pelo desenlace do mistério antes do tempo – de que Flora, personagem interpretada pela atriz Patrícia Pillar, era a verdadeira vilã da história.
O que dá a entender é que as desgraças da vida real só são "consumidas" pelos telespectadores caso virem enredo de novelas. Isso só aumenta a sensação de que é mais prazeroso criticar, comentar e refletir sobre o capítulo do dia anterior, do que um acidente, um plano de governo mal-sucedido ou injustiças cometidas nas áreas da saúde e educação, por exemplo. Também mostra que revistas semanais de fofocas ou que abordam os capítulos de novelas são mais lidas do que jornais impressos ou revistas que abordem temas relevantes para a convivência em sociedade. Enfim, eis uma breve análise sobre parte da sociedade atual: mais um capítulo da novela Alienação no Brasil.


*Estudante de Jornalismo, Faculdade Estácio de Sá, Florianópolis, SC

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