Comer buchada de bode no Nordeste virou uma espécie de vestibular para os candidatos à Presidência da República que percorrem a região em busca de votos. Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro submetido ao teste, em 1994, na cidade pernambucana de Petrolina, e ficou famoso por isso. Justiça seja feita, enfrentou a buchada com galhardia. 'Gostei', afirmou ele. Deve ter pensado: 'Já passei por situações piores'. Em Delmiro Gouveia (AL), precisou se equilibrar no lombo de um jegue. Em Caruaru (PE), fizeram-no ensaiar passos de forró - e aí por diante. A buchada lhe trouxe sorte. Fernando Henrique conquistou milhões de votos no Nordeste e ganhou dos eleitores brasileiros o direito de morar por dois mandatos no Palácio da Alvorada.
Lula fez o mesmo, mas para ele o teste não deveria valer. Pernambucano de Caetés, conhecia a buchada desde a infância, tão familiar ao seu paladar sertanejo quanto o sarapatel e o baião de dois. Dilma Rousseff, que é mineira, experimentou o prato a conselho de Lula, que lhe afirmou ser 'a melhor coisa do mundo'. Depois de saboreá-lo, balançou. 'Não considero a coisa que mais gostei', comentou Dilma. 'Mas não achei ruim.' No seu caso, a buchada também funcionou.
Há pratos que, até mesmo como teste de brasilidade, todos nós precisamos encarar. A buchada é um deles. Trata-se de uma das receitas mais antigas do País. Tem aroma forte e sabor marcante. Mas as opiniões a seu respeito conflitam. Alguns a veneram, outros a abominam. Não há meio-termo. As rejeições se devem principalmente ao nome tosco, aos ingredientes que incorpora e à falta de cuidados higiênicos de alguns poucos cozinheiros.
Existem diferentes receitas de buchada, todas de sustança. Na prática, é um embutido feito com o estômago do bode ou carneiro (daí seu nome) lavado com limão e sal, passado na água corrente, recheado com miúdos (rins, coração, fígado), sangue coalhado, tripas, língua, com tempero de sal, hortelã, salsinha, louro, cominho, alho, cebola. Costurado com linha branca, vira uma trouxa que requer no mínimo cinco horas de cozimento em caldo enriquecido e fogo brando.
'A verdadeira buchada, do tempo antigo, exige ciência de tempero e quase instituições misteriosas de cálculo', afirma Luís da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro (Global Editora, São Paulo, 2000). 'É preciso prever a hora do almoço, para que esteja no ponto e não requentada. Só é servida a buchada ao almoço.' Antes de saboreá-la, toma-se um cálice de cachaça, chamado de 'abrideira', para atiçar o apetite; ao terminar, bebe-se outro, a 'saideira', para facilitar a digestão. Harmoniza-se a buchada com arroz branco ou um pirão que aproveita o caldo do cozimento. Não confundi-la com a dobradinha (o estômago do boi cortado em tiras), mais ou menos ensopada.
A buchada é uma das contribuições portuguesas à cozinha brasileira. Para os estudiosos da gastronomia, como a recifense Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, autora do indispensável História dos Sabores Pernambucanos (Fundação Gilberto Freyre, Recife, 2009), descende dos maranhos à beirã e da Sertã, ainda denominados molhinhos, borlhões, burunhões ou saquinhos, que vêm a ser embrulhinhos feitos com bucho de cabrito ou de carneiro, recheados de carne, cebola, presunto e condimento de hortelã e colorau. É típica das Beiras, região que abrange a alta Serra da Estrela, os pântanos salgados de Ria do Aveiro e cidades como Figueira da Foz e Coimbra.
Curiosamente, na freguesia de Envendos e no concelho de Idanha-a-Nova, como mostra Maria de Lourdes Modesto, em Cozinha Tradicional Portuguesa (Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1982), são preparadas duas receitas assemelhadas, mas com estômago de porco, conhecidas por bucho recheado. Portanto, o que não falta à receita nordestina é pedigree. Quem nunca passou pelo teste não sabe o que está perdendo...