Kirchners & Chávez: diferenças e semelhanças na relação com a mídia
Por Alberto Dines em 12/10/2009
Convém distinguir generalizações são perigosas: o comportamento do casal Kirchner no tocante à mídia e à liberdade de expressão difere totalmente das opções adotadas pelo venezuelano Hugo Chávez.
A política de intimidação pode assemelhar-se; o modo de acionar os respectivos rolos compressores é diferenciado. Cristina e Nestor Kirchner são políticos experimentados, conservam inequívocos traços populistas e caudilhescos do inspirador do seu partido, Juan Perón, porém mantêm um respeito, ainda que difuso, pelos procedimentos democráticos. Chávez já foi de direita, agora é de esquerda, porém antes de tudo é um militar com ostensivos pendores para a truculência e nenhuma vocação para a negociação política ou para os rituais dos regimes representativos.
Convém acrescentar que no grupo de assessores mais próximos dos Kirchners estão alguns veteranos e brilhantes jornalistas portenhos, com um passado claramente progressista e que jamais poderiam ser acusados de sucumbir às tentações totalitárias.
A nova Lei do Audiovisual foi aprovada na madrugada de sábado com folgada margem pelo Senado argentino. O diário espanhol El País (um dos melhores do mundo, com larga circulação na Argentina) denunciou a estratégia de subornos empregada pelo governo para quebrar a oposição (sábado, 10/10, p.10). Provavelmente está certo, mas a tramitação da lei obedeceu às normas democráticas: foi aprovada pela Câmara e, no Senado, os debates estenderam-se ao longo de 16 horas. Em nenhuma das casas legislativas se produziram alterações nos 166 artigos da proposta original. Nenhum foi vetado – mesmo os mais draconianos e arbitrários.
Autoridade fiscalizadora
É preciso levar em conta que o atual Congresso será substituído em dezembro (como resultado das eleições de junho) por outro claramente anti-Kirchner, o que certamente produzirá regulamentações mais brandas e atenuadoras. Isto sem falar na anunciada batalha judicial através da qual os grupos de comunicação prejudicados – sobretudo o poderoso Clarín e o Uno – tentarão reverter itens mais abusivos.
O mais autocrático, o Artigo 161, dificilmente será mantido ou simplesmente será ignorado, porque foi contestado até por próceres peronistas. O prazo de um ano para que as empresas se adaptem à desconcentração pode ser catastrófico e provocar demissões em massa de jornalistas e técnicos.
Um dado que não pode ser desprezado é que o novo estatuto, pelo menos na aparência, não trata de conteúdo nem visa a controlar a liberdade de expressão. O objetivo é nitidamente desconcentrador. Se os meios de comunicação se assumem fundamentalmente como uma indústria, esta indústria deve ser regulada.
Uma Autoridade fiscalizará a execução da nova lei (tal como na União Européia e nos EUA com a FCC, Federal Communications Comission). Na versão argentina, a composição desta Autoridade favorece claramente o governo: dos seus sete membros, dois são indicados pelo Executivo, dois pelo Conselho Federal de Comunicação (cujos membros são escolhidos pelo governo) e os outros três são apontados pelo Legislativo.
Tratar com a devida eqüidistância
A divisão tripartite dos meios de comunicação (um terço para a iniciativa privada, outro para o governo e o terceiro para a sociedade civil) também é teoricamente desconcentradora, mas na prática pode resultar numa arrumação "chapa-branca", já que os sindicatos podem ser facilmente cooptados pelo oficialismo, antiga tradição peronista. A inclusão de entidades religiosas no terço da sociedade civil deve ser vista como concessão à poderosa igreja católica, extremamente preocupada com a avassaladora invasão das seitas evangélicas brasileiras em canais por assinatura.
As redações dos grandes jornais brasileiros finalmente voltaram a funcionar em horário normal no sábado (10/10) e assim as edições de domingo conseguiram oferecer aquele mínimo de atualidade que se espera dos diários. Embora nossa mídia não esconda sua ojeriza a qualquer medida reguladora, as manchetes podem ser classificadas entre "bem comportadas" a "ligeiramente sobressaltadas".
Globo e Folha ofereceram manchetes objetivas, praticamente iguais ("Senado argentino aprova Lei de Audiovisual" e "Congresso aprova lei de mídia de Cristina"). A do Estadão contrasta com a serenidade do texto ("Kirchners vencem no Senado e aumentam o poder sobre a mídia") [leia aqui e aqui].
Esta é uma "pauta" que a mídia brasileira não pode abandonar e tem a obrigação de tratar com a devida equidistância. A Argentina é logo ali e qualquer tentativa de manipulação provocaria justificadas reações e comprometeria o alto nível do time de correspondentes sediados em Buenos Aires.
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